Dos radicais aos sociais-democratas

AS ALMAS EM DISPUTA
DA DIREITA CHILENA

Macarena Segovia

TEMPO DE LEITURA: 22 MIN

Subsidiárias, solidárias e libertárias, essas são as diferentes linhas ideológicas que convivem hoje na direita chilena. Seus líderes protagonizam uma emergente disputa que surgiu após os protestos sociais de 2019 e hoje se debatem sobre o modelo que impulsionarão para a nova Constituição que será escrita durante 2021. Uma direita diversa, que se divide entre lideranças populistas que acentuam o discurso “antipolítico”, outros líderes com base mais social e territorial, que querem matizar o modelo neoliberal e aqueles que se negam a renunciar ao Estado Subsidiário, que regeu o país nos últimos 30 anos.

Macarena Segovia

Em estado de choque, assim ficou grande parte da direita chilena após os resultados do plebiscito constitucional de 25 de outubro no Chile, que teve como ganhadora a opção do “Aprovo” para uma Nova Constituição, com 78% das preferências. O “Rejeito”, opção levantada principalmente pela coalizão Chile Vamos, que sustenta hoje o abatido governo de Sebastián Piñera, ficou marginalizado com 20% dos votos. Enquanto a direita economicista herdeira da Constituição de Pinochet chorava a derrota, o mundo “solidário” e mais liberal da direita, que apostou na mudança constitucional, viu vantagem, já que conseguira ganhar a primeira batalha na disputa pela hegemonia da direita chilena.

A discussão pela Constituinte aprofundou a disputa ideológica na direita, que se tornou evidente após a revolta social de outubro de 2019, que inundou as ruas no Chile. A possibilidade de criar uma nova Constituição tornou público um silencioso debate que acontecia entre as elites intelectuais: mudar o modelo do Estado Subsidiário que regeu o Chile durante os últimos 30 anos. O racha na direita foi transversal: em todos os partidos do governo houve parlamentares, dirigentes sociais e militantes de base que se dividiram entre o Aprovo e o Rejeito. A União Democrata Independente (UDI), partido fundado por Jaime Guzmán, ideólogo da Constituição de 1980, foi um dos que liderou o comando do Rejeito, mas sua figura política com maior apoio cidadão e candidato presidencial, o prefeito de Las Condes, Joaquín Lavín, disse publicamente que votaria a favor do Aprovo.

O partido Renovação Nacional (RN), detentor do maior número de assentos no Congresso, dividiu-se provocando duros atritos internos entre o setor mais progressista ou “solidário” e o mundo mais conservador e pró-mercado. Evópoli, o partido mais novo da coalizão, identificado com o mundo mais liberal em seus primórdios, entrou em um loop de contradições: primeiro apoiou o “Aprovo”, depois mudou para “Rejeito” e, posteriormente, deram liberdade de ação a seus militantes. Apenas o pequeno Partido Regionalista Independente manteve uma postura única de apoio ao “Aprovo”. O chefe da coalizão, o presidente Sebastián Piñera, semeou a dúvida até o último momento: nunca tornou pública sua postura, embora seu gabinete ministerial tenha estado marcado por ministros e ministras que optaram pelo “Rejeito”. Depois do plebiscito, foi informado que sua filha, Magdalena Piñera, será candidata a delegada da Convenção Constitucional pela Renovação Nacional.

Segundo analistas políticos e militantes de Chile Vamos, a revolta social de 2019 e o início do processo constituinte marcaram um ponto sem retorno dentro da direita, que está dividida entre a emergente “sensibilidade solidária”, como denominado pela socióloga Stéphanie Alenda, em seu livro Anatomía de la derecha chilena, a “sensibilidade subsidiária” da direita tradicional, economicista e conservadora, e uma marginal “sensibilidade libertária”, que é minoritária. Fora do conglomerado governista surge a “direita dura” que imita o populismo de Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas que não conseguiu sair da marginalidade. A pergunta é: qual desses mundos ou sensibilidades conseguirá liderar a direita nos próximos anos?

A crise dos economicistas

A derrota no plebiscito atingiu duramente “La Casa Común del Rechazo” (A Casa Comum do Rejeito), comando que abrigou a direita tradicional chilena, localizado na comuna de Vitacura, onde reside parte importante da elite econômica e política do país. As bandejas com comida ficaram quase intactas e vários rostos sumiram antes de o deputado Diego Schalper (RN), porta-voz do Rejeito e parte da nova camada de políticos da direita, reconhecer que sua posição alcançara apenas 20% do apoio dos cidadãos. Um triste cartão postal que, segundo militantes e intelectuais de Chile Vamos, reflete o complexo estado em que vive o núcleo economicista.

A tese do Estado Subsidiário e uma política liberal na esfera econômica, mas conservadora na moral, foi construída com base nos pilares da Constituição de 1980, inspirada pelo “gremialismo” de Jaime Guzmán. Também na teoria econômica dos Chicago Boys, um seleto grupo de economistas chilenos da Universidade Católica, que se especializaram na Universidade de Chicago, sob o influxo das ideias de Milton Friedman, e que converteram o Chile em um experimento “neoliberal”. Nos corredores, os partidários da subsidiariedade reconhecem que ficaram para trás aqueles bons tempos em que, apesar de não serem governo durante 20 anos, conseguiram influenciar a política pública dos mandatos de centro-esquerda, dirigidos pelo Concertação.

Segundo o estudo realizado pela socióloga Stéphanie Alenda, Anatomía de la derecha chilena, o setor economicista ou de “sensibilidade subsidiária” representa mais da metade dos quadros dirigentes de Chile Vamos e encontra-se presente em todos os seus partidos, com maior presença na UDI.

“Quando os dirigentes nos diziam que eram a favor de o Estado implementar políticas redistributivas para os grupos vulneráveis, mas que eram ao mesmo tempo contra o aumento da carga tributária pessoal para financiar políticas do âmbito da proteção social, nós os classificamos como subsidiários. Uma categoria consagrada na Constituição de 80, na qual o papel do Estado fica subordinado ao Mercado e ao setor privado. A Constituição outorga um papel residual ou complementar ao Estado, quando o setor privado não consegue assumir”.

Essa direita foi ungida com base em uma estreita relação com a Igreja Católica, razão pela qual o conservadorismo se impõe no âmbito moral. Com os anos, os setores mais liberais, principalmente ligados a Evópolis, ganharam terreno e se abriram para o reconhecimento dos direitos da diversidade sexual, apoiando iniciativas como o Acordo de União Civil e a Lei de Identidade de Gênero, e neste ano o presidente Sebastián Piñera apresentará uma Lei do Casamento Igualitário. Avanços que não deixam os setores mais religiosos de Chile Vamos, como o evangélico, totalmente contentes.

Um obstáculo chega com as reivindicações feministas em matéria reprodutiva, como a legalização do aborto. De acordo com pesquisa realizada pela empresa Cadem em julho de 2020, “La derecha mira a la derecha” (A direita olha para a direita), 67% dos chilenos que se identificam como de direita não estão de acordo com uma Lei de Aborto Liberal. “Eu não sou feminista, sou feminina, sou mulher e adoraria que essa opção fosse respeitada. Não acredito no aborto livre, não falo em patriarcado, nem em matriarcado, não acredito que se trate de uma briga com os homens”, enfatizou a presidenta da bancada de deputados/as da UDI, Pepa Hoffman, em “La mañana em Chilevisión”, um programa popular da TV matutino, no qual se analisava a massiva marcha do 8 de março no Chile.

A direita economicista impera no governo do presidente Sebastián Piñera, cuja base técnica e de influência política se resguarda no centro de estudos Liberdade e Desenvolvimento (LyD), fundado por Cristián Larroulet, chefe da equipe de assessores do presidente e uma das poucas pessoas que consegue influenciar o presidente. Esse think tank foi também o núcleo político e ideológico do “Rejeito”, acolhendo várias figuras que tiveram que deixar o governo após a revolta social.

“Liberdade e Desenvolvimento, que se apresenta como um centro de estudos, é mais um lugar de tráfico de influências e formação de quadros. Esses poderes fáticos são importantes na direita chilena. Até que ponto esse processo e impulso de renovação ideológica é capaz de enfrentar o aparato dos que estão realmente convencidos desse discurso economicista? Os que se reproduzem em setores autocontidos, mas seu poder econômico e de influência social nos bastidores é muito forte”, destaca Hugo Herrera, filósofo e acadêmico da Universidade Diego Portales.

A diretora executiva do think tank é Marcela Cubillos (UDI), ex-ministra da Educação do atual governo e uma das figuras mais controversas e duras da direita tradicional. Cubillos foi implementando um novo estilo comunicacional, muito mais direto e incendiário, baseado nas redes sociais e no impacto no Twitter, muito semelhante ao da “ultradireita” que está fora de Chile Vamos. Estilo diferente do da direita tradicional que está acostumada a intervir na esfera pública através dos meios de comunicação tradicionais, como o jornal El Mercurio, embora também tenham usado pesquisas e análises de BigData no segundo governo de Sebastián Piñera.

Cristián Leporati, especialista em comunicação política, destaca que a direita tradicional “tem um problema, porque a linguagem que costumam usar, e a propaganda mais clássica de direita funciona em algumas mídias tradicionais, mas não nas novas mídias, onde estão justamente os públicos mais jovens. A direita não conseguiu resolver como operar as redes sociais, não podemos esquecer que os bots (um software preparado para realizar atividades repetitivas) não votam, geram climas, mas não votam”.

Entre os intelectuais da direita é consenso que esse setor, de sensibilidade subsidiária ou economicista, está em crise e que parte da responsabilidade por esse fracasso é da liderança exercida pelo presidente Sebastián Piñera. A historiadora liberal Valentina de Verbal aponta que a crise do setor teve início em 2011, ano em que Sebastián Piñera começou a ceder perante as demandas do Movimento Estudantil.

“Não defendeu os princípios da liberdade econômica, o direito de lucrar no mercado, não por razões econômicas, mas sim morais, porque aí estão os empreendedores, as pessoas que acordam cedo”,
diz Verbal.

Para a autora do livro La Derecha Perdida o presidente foi renunciando ao seu próprio ideário a favor das ideias de esquerda, “tanto que a direita incluiu no programa de ‘Piñera II’ a gratuidade universal nos Institutos Técnicos Profissionais, que foi uma medida de Manuel José Ossandón (ex-candidato presidencial da direita social) para tentar ganhar votos. O atual Estado é um Estado de bem-estar, não tão extremo quanto o promovido pela esquerda, mas é um Estado de bem-estar no final porque tem projetos a favor da classe média, como o programa Classe Média Protegida”, acrescenta.

“A verdade é que o Chile nunca teve um Estado subsidiário, o Estado no Chile está muito presente em todos os âmbitos. Pense em todos os ministérios que possui, todos os órgãos, para cada problema há um órgão público que se encarrega desse problema, e isso não é próprio de um Estado subsidiário no sentido de subsidiariedade negativa (o estado se abstém de agir). Eu considero que o Chile, de modo geral, mesmo com o modelo concebido pelos ‘Chicago Boys’, avançou para um Estado mais forte”, garante Valentina Verbal.

O filósofo Hugo Herrera acredita também que o presidente Piñera foi um fator-chave na crise que a direita atravessa, mas de uma perspectiva mais social. “Para muitos na direita, o primeiro governo de Piñera não deixou legado político, não foi capaz de transferir o poder para outra pessoa de direita, mas mais do que isso, não houve um discurso político que pudesse enfrentar a situação e conduzi-la”, enfatiza o acadêmico da UDP.

“Acredito que o problema de Piñera é que seu quadro conceitual era muito estreito, e é o problema de grande parte da direita. Ele entende a política como gestão econômica e gestão policial. Isso é algo que entrou no Chile e é estranho entender, mas se vemos os textos de Milton Friedman, e os chilenos que foram estudar economia com Friedman o assumiram completamente, são duas ideias: que a sociedade é um mero agregado e que os indivíduos funcionam separadamente, e que a ordem econômica liberal é a base de uma ordem política adequada, sob a premissa de que os indivíduos perseguem seus fins separadamente. Então, o povo não existe e vem uma crise como a de 2011 ou a de outubro de 2019, o povo irrompe e Piñera não consegue ver bem o que está acontecendo, porque suas categorias conceituais lhe impedem ver, porque não se pode ler a manifestação de milhões nas ruas a partir da concepção de indivíduos que perseguem seus fins separadamente, não tem sentido”, aponta o filósofo.

A irrupção da direita social

No ano de 2016, a socióloga Stéphanie Alenda começou o estudo Anatomía de la derecha chilena, publicado como livro em 2020, que inclui 700 lideranças da coalizão Chile Vamos. Lá ela identificou que 30% dos militantes mostravam uma sensibilidade diferente à histórica subsidiária e esperavam um papel social mais ativo do Estado. Ela os definiu como portadores de uma “sensibilidade solidária”. “Trata-se de uma posição que enfatiza a relevância de aumentar os impostos individuais para financiar a proteção social, o que nos chamou a atenção. Os solidários aparecem sempre como os mais progressistas quando lhes perguntamos o que opinam sobre aumentar os impostos sobre as grandes empresas ou do lucro na educação; também sobre assuntos morais, socioculturais. O comportamento desse segmento se mantém sempre coerente, confirmando sua tendência à moderação,explica Alenda.

Essa sensibilidade solidária está transversalmente presente em Chile Vamos como um todo, mas se concentra no partido Renovação Nacional, que é mais diverso e com menos controle interno do que a UDI, que incorpora líderes de uma origem social diferente, principalmente de camadas médias e baixas. Suas lideranças tendem a ocupar cargos com uma maior conexão territorial; geralmente são prefeitos, vereadores ou parlamentares que não fizeram carreira unicamente com base na política. Um de seus primeiros precursores é o senador Manuel José Ossandón, que provém de uma família abastada, latifundiária e muito religiosa, mas cursou seus estudos como técnico agrícola em um Instituto Profissional e foi prefeito durante 12 anos da comuna de Puente Alto, uma das mais populosas e pobres do Chile. Os mais próximos dizem que “a rua o levou a desenvolver uma visão mais social-cristã da política”.

“Em 2014, o Renovação Nacional faz uma reforma na declaração de princípios quando entra a liderança de Nicolás Monckeberg, retiram a alusão à ditadura e incorporam textos da Democracia Cristã alemã, tentam fazer uma espécie de guinada para uma direita mais europeia. Isso tem outros marcos, como a incorporação do RN à Internacional Democrata de Centro, onde teve o apoio de Conrad e da DC alemã. Soma-se a isso todo um trabalho dos centros de estudo, de pessoas mais ligadas ao mundo acadêmico também, mas que têm um pé na política”, explica o filósofo Hugo Herrera.

Esse bloco solidário se mostrou em sua máxima expressão ao apoiar a “Lei de Aposentadoria de 10% dos Fundos de Pensão da AFP”, que pretendia que as pessoas pudessem sacar parte de suas economias previdenciárias para pagar os custos da crise econômica, diante da insuficiência das políticas de ajuda do governo de Sebastián Piñera. Um projeto que abalou as bases do sistema de seguridade social baseado na capitalização individual e que para o setor economicista da direita significou um ponto sem volta em matéria de liberdade econômica. “Devo votar hoje com consciência, por empatia, em consequência com minha história de vida. Sei o que é ter fome e passar frio”, disse a deputada Erika Olivera (RN) que chegou ao parlamento depois de uma reconhecida carreira como atleta.

O principal líder do setor solidário é o ex-presidente do Renovação Nacional, Mario Desbordes, que deixou seu cargo como deputado há alguns meses para chefiar o Ministério da Defesa do governo de Sebastián Piñera. Desbordes tem uma carreira atípica no mundo da política chilena: cresceu na comuna de classe média baixa La Cisterna, foi parte dos Carabineros (a polícia civil chilena) e estudou direito e administração de empresas em universidades não tradicionais. Somente no ano 2000 passou a militar no RN e participou do primeiro governo de Sebastián Piñera. Na campanha para o segundo período de Piñera, foi um dos que impulsionou a gratuidade para a educação técnico-profissional e o cancelamento das dívidas do Crédito com Aval do Estado, política que endividou a quase um milhão de jovens para financiar seus estudos superiores. 

Em meio ao levante social de 2019, destacou-se por ser uma voz dissidente dentro da direita, foi um dos principais articuladores do “Acordo pela Paz e uma Nova Constituição” e, em várias ocasiões, fez um chamado a “ouvir a rua”. Foi um dos primeiros a apoiar o projeto de “Aposentadoria de 10%” e liderou o setor do “Aprovo” na direita. Sua incorporação ao gabinete foi um sinal de governabilidade interna em Chile Vamos, já que se uniu a ele André Allamand (RN), que liderou a rejeição e tentou impedir a aprovação da “Aposentadoria de 10%”. 

O deputado Andrés Celis, que faz parte do setor solidário e liberal do mesmo partido, assegura que “no RN vários mudaram, se você tivesse me perguntado há três anos quem me representava no campo liberal, eu teria citado um Andrés Allamand, mas hoje em dia, mudou. Hoje, claramente quem me representa é Mario Desbordes. Acredito que um dos seus grandes atributos é que ele sabe ler bem e sabe captar de forma adequada o que está acontecendo, não por uma questão de oportunismo, mas por realismo, ele não se complica por ter que ceder”. 

Dentro dessa direita mais social, ganha destaque um grupo de parlamentares que se identificam como feministas ou pró-direitos das mulheres, embora não antipatriarcais. Nomes como o da senadora Marcela Sabat e os das deputadas Paulina Nuñez, Erika Olivera e Ximena Ossandón cumpriram um papel fundamental para a aprovação da histórica Lei de Paridade de Gênero para a Convenção Constitucional. Em matéria de autodeterminação do corpo são menos liberais, não apoiam a Lei do Aborto, mas a deputada Erika Oliveira apoiou a lei de Educação Sexual Integral.  

Dentro desse setor mais solidário incluem-se também alguns dirigentes da União Democrata Independente, principalmente prefeitos. O mais destacado é Joaquín Lavín, vereador da comuna elitista Las Condes e pré-candidato presidencial da direita. Durante seu período como prefeito, imitou várias políticas populares idealizadas pelo prefeito comunista Daniel Jadue, seu principal oponente para a próxima eleição presidencial. Joaquín Lavín é um histórico dirigente da UDI, que apoiou a ditadura militar de Augusto Pinochet, membro do seleto grupo dos ‘Chicago Boys’ e supranumerário do Opus Dei da Igreja Católica. 

Durante sua carreira, demonstrou uma grande adaptabilidade para os momentos sociopolíticos. No primeiro governo da presidenta socialista Michelle Bachelet, ele se declarou “aliancista-bachelista” e declarou sua admiração pela liderança da mandatária. No meio da revolta social de 2019, apoiou a ideia de convocar um plebiscito para mudar a Constituição idealizada por Jaime Guzmán, com quem compartilhou fileiras no “gremialismo”, e foi partidário do “Aprovo”. No meio da discussão constitucional, surpreendeu ao se denominar como “social-democrata” ao estilo da direita alemã, o que gerou fortes críticas nos setores mais duros de seu partido.

O prefeito de Las Condes tem uma estratégia de comunicação potente, é ativo nas redes sociais e sempre mantém um tom amigável e não conflituoso, sua principal vitrine tem sido a televisão aberta, há alguns anos se tornou painelista de “Bienvenidos”, um dos programas matinais mais assistidos no Chile. Desde a revolta de 2019 se tornou um dos principais rostos dos programas matutinos que assumiram um papel lúdico, informativo e político, no que se chamou “celebritização ou matinalização da política”.

“Em relação a Lavín, acho que sempre cabe a dúvida de quanto suas viradas não são oportunistas e ele se mantém sendo um chicago-gremialista ou está pensando sobre as questões politicamente. Não sei se Lavín e seu entorno e formação vêm desse mundo, ele é muito próximo de Larroulet”, aponta o acadêmico Hugo Herrera.

A historiadora Valentina Verbal garante que a direita sempre teve várias tendências, principalmente liberais e conservadoras, “em geral a tendência social-cristã sempre foi muito minoritária na direita (...) o social-cristão não se refere aos conservadores defendendo a doutrina social da igreja, refere-se a uma tendência dentro do cristianismo que se opõe ao capitalismo, é como um anticapitalismo social-cristão, é como uma terceira via, uma alternativa ao socialismo e ao capitalismo. Como o que terminou sendo no final a Democracia Cristã; na direita houve essa tendência, mas muito pequena, que no final foi o setor que se uniu à falange nacional para formar a DC. No presente, a direita social-cristã tem tentado de se reinstalar intelectualmente”. 


“O que é chamado de direita social, acredito que, mais do que uma direita social, é uma direita populista. No sentido de que entende que a direita tem que responder aos movimentos sociais, à rua. Populismo que no fundo considera que a base da política deve ser o povo acima da elite. Ou seja, as elites não podem trabalhar independentemente do povo, devem escutar. E foi nisso que caiu principalmente o Renovação Nacional, especialmente com Ossandón, que agora é investigado por fraude fiscal. E isso foi pego por Mario Desbordes e Lavín por outro lado. Qual é o elemento ideológico que eles têm? Eles não têm um elemento ideológico de fundo, não é que digam ‘bom, nós temos que nos mover de acordo com esses princípios’, eles não têm um projeto elaborado”, acrescenta a intelectual liberal.

A ultradireita populista

O ressurgimento da direita dura ou radical em nível global também tem sua expressão no Chile. Por fora da coalizão Chile Vamos, começaram a surgir movimentos e partidos que se denominam “A Direita”, acusando a atual coalizão de governo de ser uma versão “light” que renunciou aos princípios da direita tradicional. Seguem a receita dos movimentos ultraconservadores no mundo, identificam-se como republicanos, capitalistas e libertários economicamente, mas são extremamente conservadores do ponto de vista moral. Reivindicam o legado da ditadura de Augusto Pinochet e consagram a família heteronormativa como o núcleo da sociedade. Teorizam contra o que denominam “ideologia de gênero”, dizem representar o “Chile real” e renegam o mundo político tradicional, que eles afirmam ter sido cooptado pela corrupção. 

A referência com maior peso dessa direita dura é o recém-fundado Partido Republicano, presidido por José Antonio Kast (JAK), ex-militante da União Democrata Independente. JAK cultiva o mesmo discurso “antipolítico” e antiestablishment” que foi promovido por Donald Trump nos Estados Unidos e por Jair Bolsonaro no Brasil, apresentando-se como um outsider, apesar de sua carreira política ser muito tradicional. Antes mesmo de se formar como advogado, foi eleito vereador da comuna de Buin; durante 19 anos foi deputado no Congresso Nacional e, apesar de ter liderado a bancada do seu ex-partido, nunca conseguiu se destacar como um rosto promissor na UDI. Em 2016, renunciou a seu partido e concorreu como independente para a presidência, apoiado por um núcleo de confiança que depois daria vida ao movimento Ação Republicana, base social do Partido Republicano. Na disputa para chegar ao palácio La Moneda, Kast conseguiu 8% das preferências, ganhando um espaço no mapa político do Chile. 

O movimento Ação Republicana tem sido um dos mais críticos do presidente Sebastián Piñera. Na minuta “O Chile precisa de um projeto de direita”, destacam que seu “governo foi incapaz de baixar os impostos, proteger a família, garantir a ordem pública e o Estado de Direito”. No entanto, no setor também prevalece o pragmatismo e que tudo fique em família: apesar das críticas ao presidente, após sofrer a derrota no plebiscito constitucional, José Antonio Kast enviou uma carta a Sebastián Piñera na qual pede que ele intervenha para que a direita entre em uma lista conjunta para disputar a eleição de delegados para a Convenção Constitucional.

No mundo da direita dura também há organizações mais extremas, grupos de choque e de corte nacionalista. O “Movimento Social Patriota” e “Capitalismo Revolucionário” ou “A Vanguarda” são as que alcançaram maior visibilidade. Foram parte importante das marchas organizadas pelo “Rejeito” no plebiscito pela nova Constituição. Foram às manifestações usando coletes à prova de balas e capacetes, estavam armados com bastões retráteis, gás de pimenta e escudos. Protagonizaram diferentes atos violentos contra pessoas que se manifestavam a favor do “Aprovo”, e um de seus principais integrantes, Sebastián Izquierdo, está sendo processado pelo Ministério Público por lesões e ameaças durante as marchas do Rejeito. Apesar de o restante da direita renegar esses grupos mais ultradireitistas, foi possível observar alguma proximidade com militantes da UDI, como com uma ex-candidata a deputada, Loreto Letelier, que apareceu em um vídeo agradecendo “A Vanguarda” por proteger as marchas do Rejeito.   

Embora o setor seja diverso quanto à expressão de sua radicalidade, eles compartilham princípios comuns como o de uma economia capitalista e libertária, acompanhada de um Estado pequeno, do papel subsidiário e focado na segurança policial. Prestam tributo a valores conservadores, principalmente cristãos, que os levaram a impulsionar movimentos “antigênero”. Aqui se encontram organizações como “Sempre pela Vida” ou “O ônibus da Liberdade”, que se organizaram contra a legalização do aborto, também há o movimento “Com meus Filhos Não se Meta”, que surgiu como reação às reformas educacionais realizadas pelo governo de Michelle Bachelet. Os grupos antigênero têm uma influência em todos os partidos de centro-direita chileno, um exemplo disso é o forte lobby que mobilizaram contra a Lei de Educação Sexual Integral, proposta por um grupo de parlamentares de centro-esquerda, iniciativa que finalmente foi rejeitada no Congresso. 

“O movimento antigênero no Chile começa há uns dez anos de forma mais sistemática e alcança seu auge com o ônibus da organização – espanhola de extrema direita – HazteOir. Tem ligações com certos líderes que, apesar de não participarem ativamente em partidos políticos, recebem apoio de alguns dirigentes da UDI. Da mesma forma, um personagem importante que se vinculou ao financiamento é José Antonio Kast. Além disso, as igrejas evangélicas têm desempenhado um papel importante, e mais recentemente com a bancada evangélica do Congresso”, explica Jaime Barriento, doutor em Psicologia Social e acadêmico da Universidade Alberto Hurtado.

O mundo evangélico é outro setor que flerta com a direita dura, mas, diferentemente do Brasil, onde se constituíram como uma força política com representação parlamentar coesa, no Chile não contam com uma articulação tão clara e distribuem-se em diferentes partidos de centro-direita. O deputado do Renovação Nacional Leonidas Romero é evangélico, e garante que o voto de sua igreja foi fundamental para que o presidente Piñera ganhasse as eleições, mas “quando chegou a La Moneda, ele se esqueceu e começou a apoiar essas leis como o casamento homossexual”, indica Romero.

“Infelizmente, nós do mundo cristão, especialmente evangélico, chegamos tarde na política. Ainda há pastores evangélicos que dizem à sua congregação que não é saudável participar da política, que não se deve adorar a dois deuses, e entregamos aos ateus e aos agnósticos a construção de nosso país. Produto disso, hoje em dia temos leis tão aberrantes como o aborto libre, casamento igualitário, adoção homoparental, queriam ter a Educação Sexual Integral (ESI), que sexualiza nossas crianças. É importante que mais cristãos e, principalmente, evangélicos cheguem a ocupar os cargos públicos”, destaca o deputado Romero, que enfatiza que não é de ultradireita. 

Os jovens representam outro setor em que a direita dura começou a crescer. “É importante que a democracia volte às casas de estudo que hoje são sequestradas pela esquerda ideológica”, declarou José Antonio Kast, no âmbito de uma turnê nacional em universidades que realizou em 2018. Tentando ganhar a simpatia juvenil, JAK foi o primeiro político em se aventurar no TikTok e fez até o desafio do reggaeton “Tusa”, o hit do verão de 2020. Pouco a pouco, Kast foi montando uma rede de jovens profissionais, intelectuais e até youtubers que o convidam para seus programas, alcançando notoriedade nos cibercírculos republicanos. Soma-se a isso uma espécie de polo teórico desenvolvido em think tanks como o Centro de Estudos Libertários, onde a filósofa Vannessa Kaisser é um dos principais quadros intelectuais e influencer em seu canal do YouTube, “Esfera Pública”, que tem milhares de visitas. 

Na direita dura também usam a estratégia das fake news. Em 2019, criticaram José Antonio Kast por divulgar informação falsa sobre a ex-presidenta Michelle Bachelet: “Foi cúmplice do tráfico de pessoas”, disse em um canal de televisão, fazendo alusão à grande quantidade de migrantes haitianos que chegaram ao Chile durante seu governo, informação que foi desmentida posteriormente. Durante a campanha do Rejeito também tentaram implantar um discurso do terror, tentaram reviver o efeito do “Chilezuela”, apontando que o Chile seria semelhante ao regime de Nicolás Maduro se houvesse uma mudança constitucional. Dessa vez, a estratégia não rendeu os mesmos frutos.

No âmbito comunicacional, a equipe do Partido Republicano desenvolveu uma política de autonomia das mídias tradicionais, e as redes sociais têm sido suas principais plataformas. “Potencializamos nossos próprios meios de comunicação”, destacou a jornalista do Partido Republicano, Carolina Ayala, em uma entrevista ao jornal La Segunda, com o objetivo de que “não existam deturpações”, explicou. Além disso, desenvolveu uma ágil rede de comunicação via WhatsApp através da qual coordenam os desdobramentos nas redes sociais e têm um grande poder de ocupação marcando trending topic no Twitter. Asseguram que não trabalham com agências, mas nos últimos meses teriam contado com a assessoria de “Artool”, agência de Jorge Selume, o ex-chefe da Secretaria de Comunicações do governo de Sebastián Piñera, que deixou o cargo após apresentar um relatório de Big Data que apontava que houve influência “estrangeira” na revolta social de 2019 e que os e as fanáticas do K-Pop estavam por trás das manifestações.

Segundo Cristián Leporati, analista especializado em comunicação política, “Kast tem tentado replicar o que viu em outros lugares e não vai sair desse modelo, vai continuar crescendo em seu padrão eleitoral, em seus seguidores, porque obviamente em um mundo de dúvidas o ser humano precisa de certezas. Vamos continuar vendo essa fórmula, propagandística e retórica, até que deixe de ser operativa e não permita sucessos eleitorais”.

A política e estratégia comunicacional da direita dura tem forjado laços com seus símiles estrangeiros. José Antonio Kast se reuniu com diferentes líderes do setor. Em outubro de 2018, JAK chegou ao Brasil para se encontrar com o presidente Jair Bolsonaro e, em meados de 2019, Kast teve uma reunião com os líderes do partido espanhol Vox e seu líder, Santiago Abascal. No encontro, abordaram “a urgência de frear o marxismo cultural e a necessidade de defender valores conjuntos entre países irmãos”, segundo detalhou o político chileno. O que nunca ficou claro é se o Partido Republicano foi assessorado pela plataforma “The Movement”, que se oferece para movimentos de direita dura, criada pelo ideólogo e ex-assessor de Trump, Steve Bannon.

Essas são as faces da direita chilena: solidários, economicistas e ultradireitistas, grupos que se encontram em um momento de mudança e acomodação, e que durante o último ano desencadearam uma luta interna pela nova hegemonia no setor, luta intensificada pelo processo constituinte que foi aberto no país. Uma disputa que não só colocou em xeque o governo de Sebastián Piñera, que teve que contornar uma espécie de “semiparlamentarismo” de fato em um país hiperpresidencialista, endossado por parlamentares de suas próprias fileiras; como também revelou que o mundo direitista chileno está fragmentado e em tensão, no meio de uma profunda crise política que atravessa o país. É claro que, passados 30 anos após a ditadura,

“as direitas” vão além do projeto de “oásis neoliberal” deixado por Jaime Guzmán.

O KIT DA NOVA DIREITA CHILENA

É uma direita fragmentada em projetos ideológicos.

O princípio neoliberal é tensionado por uma visão de Estado mais "social-democrata".

A direita tradicional continua utilizando seu poder e influência na mídia.

A ultradireita explorou a estratégia via redes sociais.

A direita chilena é transversalmente conservadora " no campo moral" e contrária ao aborto.

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